Eduardo Muylaert

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A volta da seção Processo de Criação é em grande estilo. Mostramos o processo de Eduardo Muylaert na concepção do seu ensaio Mulheres dos Outros. O trabalho acaba de ganhar uma exposição individual na Fauna Galeria com curadoria de Eder Chiodetto.

Edu é um amigo e tive o prazer de ver esse material já faz um tempinho, inclusive alguns cromos. Ver essa exposição agora é uma satisfação para nós aqui do Olhavê.

O bate-papo foi conduzido por Georgia Quintas.

SERVIÇO

Local: Fauna Galeria – Al. Gabriel Monteiro da Silva, 470 – São Paulo/SP

Fone: (11) 3668.6572 – fauna@faunagaleria.com.br

De 15 de fevereiro (19h às 22 h) até 19 de março

Fotos: Eduardo Muylaert

GEORGIA QUINTAS – Como surgiu a idéia do trabalho Mulheres dos Outros?

EDUARDO MUYLAERT – Como todos os meus trabalhos, surgiu de um achado. Uma das coisas que dão graça à vida são as res derelicta, os objetos insólitos deixados ao longo do caminho, sabe-se lá por quem. Na minha vida de advogado, além de criminalista que sou, fui Procurador do Estado. Na vida civil, vivo procurando. Procurando o quê? Uma coisa, uma imagem, uma idéia que tenha alguma ressonância. Uma lembrança perdida ou abandonada por alguém, às vezes em outra época, que descubro fazer parte das memórias que me faltam.

O retrato do corpo desnudado é um registro universal, desde a idade da pedra lascada. Por outro lado, as figuras kitsch de outras épocas alimentaram o nosso inconsciente coletivo, se tornaram nossas lembranças também, numa espécie de herança icônica. Redescobrir esses signos e atualizá-los traz tanta alegria quanto inventar uma vacina. É um pouco como a cura de uma doença, vencer a luta contra os fungos destruidores, as manchas do tempo, e o pior dos males, o esquecimento. Em vez de descartar, podemos reciclar, energizar, reinterpretar. Tirar o bolor, ou transformá-lo em sabor, tipo gorgonzola ou roquefort. Ou mesmo penicilina, esse anacrônico antibiótico.

GEORGIA QUINTAS – Há quanto tempo se dedica a ele?

EDUARDO MUYLAERT – Os slides foram encontrados há alguns anos, numa velha caixinha posta à venda na feirinha do MASP, em São Paulo. Foi na banca do Severo, que já não existe mais. Por fora, uma anotação manuscrita em vermelho, nus artísticos, o suficiente para despertar minha insaciável curiosidade. Não dava bem para ver as imagens, desbotadas e empoeiradas.

Apos breve negociação, com falso ar de desinteresse, fixou-se em cem reais o preço do objeto de desejo. Naquele momento eu já sabia que dali ia sair um trabalho e, para mim, a ocasião de trabalhar novamente com a imagem do corpo feminino. Depois de relativamente longa hibernação, pus a mão na massa e comecei a re-fotografar os cromos, a olhar para eles, criar familiaridade.

Mas foi no escâner que eles voltaram à vida, com suas ricas imperfeições. As ferramentas de restauração da cor acabaram por gerar uma nova escala cromática. E os cortes, dando novo enfoque, que excluiu propositalmente os rostos, completaram a transformação. Difícil acreditar que o ponto de partida foram as sofridas pinups dos anos 50. Mergulho no tempo? Não é preciso ser Einstein ou Jung para saber que o passado sobrevive em nós, mas que nós é que lhe damos forma. Haja terapia, ou arte.

GEORGIA QUINTAS – Mulheres dos Outros está fortemente ligado à vertente da apropriação na arte, da elaboração de um novo ponto de vista a partir de uma imagem como referência e base para a construção de outra. Esta é uma questão inerente a um outro ensaio seu Galeria dos Grandes Mestres da Pintura. Nos fale sobre esse processo de re-fotografar.

EDUARDO MUYLAERT – No princípio era o Verbo. Vi Joan Fontcuberta falar da saturação de imagens, ouvi fascinado Joachim Schmidt falar e mostrar seus trabalhos feitos a partir de imagens de outros fotógrafos. Custei a me dar ao luxo de adentrar essa seara. Como hermeneuta, treinado para interpretar normas, fui buscar argumentos nas leituras de arte contemporânea. Afinal, me convenci de que estava tudo certo. Vivemos num mundo de palimpsestos, esses pergaminhos que são apagados para dar lugar a novos textos, sem perder parte dos traços originais. Num universo que ameaça desaparecer, pela ação destrutiva da humanidade, é importante contarmos com estratégias de engenharia reversa, que permitam reencontrar, ou reinventar, as fontes perdidas. Esse outro ensaio, A Galeria dos Grandes Mestres da Pintura, caminha nessa direção.

O rico Museu de Dresden, na Alemanha, quase foi destruído durante a Segunda Guerra. Por volta de 1900 as obras de Rembrandt, Durer, Murillo, Rafael, haviam sido fotografadas em branco e preto e reproduzidas. Numa feirinha, sempre as feirinhas, achei algumas dessas copias separadas por um tênue papel de seda, que havia acumulado tinta ao longo de um século. Esse foi o meu negativo, a gerar copias por contato em papel fotográfico que, digitalizado por escâner, serviu de matriz das novas imagens.

Uma alegria brincar com a obra dos Grandes Mestres, sem muita reverência. Se o Museu, da próxima vez, não escapar da destruição, ainda restarão, no meu ensaio, seus cavalheiros e suas madonas. Hiper-texto, meta-linguagem, essa moda pegou e não poupa nem mesmo a literatura. A semiótica que o explique.

GEORGIA QUINTAS – Você possui a dinâmica de imprimir em sua própria casa. É muito claro seu interesse em manejar o processo de “cuidar” pessoalmente da imagem fotográfica. Manipular, justapor, cropar, printar… Como você realizou tecnicamente esse trabalho?

EDUARDO MUYLAERT – Adoro esse tipo de bricolagem. Não me dei bem na marcenaria, na filosofia e nem no quarto escuro. Mas o laboratório digital é o meu habitat. Num pequeno espaço se pode produzir toda a transformação. Câmera, escâner, computador, impressora. Produzo minhas cópias até o tamanho A2, 40×60 cm.

Para cópias maiores, recorro aos sofisticados ateliês de impressão que há em São Paulo. Por mais que questionem o Photoshop, esse programa e o Lightroom são ferramentas poderosíssimas, não para falsear, mas para criar ou re-criar. Ao mesmo tempo, exigem um constante aprendizado. Resgatar as frequências de uma imagem esmaecida pelas variações que permite um filtro como o high-pass, por exemplo, reconstruir uma escala cromática, eliminar ou realçar a sujeira e as marcas, inventar novos cortes, ah, puro prazer. E alguma dedicação.

Vamos deixar bem claro, os programas não fazem nada, o artista é que faz, como faziam os pioneiros no laboratório PB. Só mudam as químicas e os instrumentos. Adoro sentir o perfume do papel de algodão, produzido pelas mesmas fábricas e a partir dos mesmos processos de manufatura do papel de gravura há mais de 500 anos. É assim, pelo cheiro, que confiro o lado certo para imprimir. Ver o papel saindo da impressora é tão emocionante quanto observar a imagem se formando no banho de revelação.

GEORGIA QUINTAS – Uma de suas referências teóricas, o artista Richard Prince revela um ponto importante que ressoa no ensaio de Stephen Bull quando diz: “A construção moderna do autor não nos abandonou e pode estar tão presente na obra que utiliza fotografias encontradas como em qualquer outro lugar”. O que significa para você re-contextualizar o olhar de outro fotógrafo?

EDUARDO MUYLAERT – Prince é mais que um herói, é um herói americano. Um cowboy, recortado e ampliado a partir de uma propaganda de Marlboro, foi vendido em leilão, em 2006, por mais de um milhão de dólares, tornando-se uma das fotografias mais caras da história. Prince sempre trabalhou com apropriação de imagens. Para Michael Newman, “isso não significa que Prince esteja simplesmente produzindo cópias de imagens existentes. Há decisões envolvidas no processo de enquadrar, fotografar e imprimir a imagem”.

No ensaio Mulheres dos Outros, os fragmentos de corpos das pinups são apresentados junto com imagens de esculturas Greco-romanas, que fotografei no Museu do Louvre, em janeiro de 2010. Nos dois casos se pode colocar a questão da autoria. Você pode dizer que não é bem assim, que as fotos das esculturas são minhas mesmo, eu as fotografei. E o escultor, autor original, como fica? A escultura é sua, mas a foto é minha? O rosto é seu, mas o clique é meu? Quem é o pai da criança?

Uma exposição recente, de “reproduções” de esculturas, foi batizada de “A cópia original”. O importante é que foram e estão sendo derrubadas as barreiras da criação, pois a memória visual e o inconsciente coletivo não têm dono. As mulheres originalmente eram dos outros, outros quem? Fotógrafos anônimos e mal pagos de produções baratas em série, retratando mulheres nuas e mal pagas, de modo a despertar a imaginação, mas não a ira da censura. Se o meu trabalho tem originalidade, as mulheres dos outros agora são minhas, sem falso pudor.

O requisito central é o da originalidade. Feio é plagiar, é se aproveitar de um bom trabalho e aviltá-lo. O bigode que Duchamp colocou na Monalisa é um desafio, mas também uma homenagem. Alguns críticos conservadores ainda procuram confundir apropriação com plágio. Não se sensibilizam com o fato de que coisa diferente, muito saudável, é re-visitar, re-interpretar, rever a herança cultural, rica ou pobre, cult ou kitsch, revigorando-a com um sopro de ar fresco e impedindo que seja enterrada ou descartada sem sequer uma coroa ou marcha fúnebre. Quem imaginaria que as mulheres de slides feitos para excitar machos da metade do século XX iriam parar numa galeria de arte no milênio seguinte?

GEORGIA QUINTAS – A sedução de re-fotografar não deixa de ser um exercício árduo. Ou não? A “co-autoria” é confortante ao compartilhar poéticas e subjetividades?

EDUARDO MUYLAERT – Acabei por me convencer de que não se trata de co-autoria, mas sim de autoria no sentido próprio da palavra, como atesta Stephen Bull, acima citado. Desde que a obra de segundo grau, ou segunda leitura, preencha o cânone da originalidade. Agora, que é um exercício árduo, lá isso é mesmo. Trata-se de mergulhar em mitologias que por vezes rejeitamos no plano racional, brincar com elas. Somos politicamente corretos, condenamos a exploração machista do corpo feminino, rejeitamos a idéia da mulher-objeto desejável. Trabalhar com tais clichês é reforçá-los ou denunciá-los?

Um pouco de fantasia, deixemos a imaginação fazer o seu trabalho. A obra nasce do impulso, do inconsciente, da mania, da curiosidade, do desejo, enfim. O resto é explicação, é racionalização. Acredito que a exposição das imagens abra um canal de comunicação mais profundo com a mente e os sentidos do espectador contemporâneo do que qualquer discurso organizado. Aí sim vamos ver se a poética se impõe e se a subjetividade pode ser ou vai ser compartilhada. O risco inicial é do autor, o risco do mostrar. O risco seguinte é do espectador, o risco do olhar. Quem não arrisca, não petisca.

GEORGIA QUINTAS – Na história da fotografia, a imagem feminina e sua nudez conjugam interpretações valiosas para a reflexão sobre a cartografia simbólica em torno da sensualidade, dos paradigmas sociais de quem posa e dos sentidos que possuem enquanto representação cultural. O que os corpos em Mulheres dos Outros sublimam através do seu olhar?

EDUARDO MUYLAERT – Confesso que não sei, se soubesse talvez não precisasse fazer esse trabalho. Apesar da banalização das imagens de corpos nus, e até de práticas sexuais, mesmo nas comédias românticas norte-americanas que se pretendem ingênuas, a questão do corpo, da sensualidade e do encontro dos corpos continua sendo um desafio, um tabu e um enigma para cada ser humano, das cavernas às baladas, do oriente e do ocidente, adolescentes ou crescidos.

Não adianta fingir que tudo é normal, que tudo é banal. É bom perder o fôlego, ao menos de vez em quando. Há um fascínio, uma atração, um impulso, que felizmente subsistem. Foi bom brincar com esse registro datado do corpo feminino, um exorcismo, um deleite, um começo de conversa. Se esse universo visual é sublime ou vulgar, que o diga quem olhar.

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